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Impactos do Coronavírus nos contratos de direito privado: consequências cíveis e trabalhistas
É tempo de COVID-19. Em meio à desordem mundial causada pela insegurança na saúde pública, medo da superlotação em hospitais, receio pela falta de conhecimento dessa doença, fechamento de empresas, paralisação de atividades, isolamento de colaboradores, fechamento da bolsa de valores, fechamento de fronteiras, alta da moeda americana e baixa nas atividades econômicas, contratantes e contratados, empregadores e empregados tentam se adaptar à nova situação. Mas quem arcará com todo esse prejuízo? Será justo que a bomba caia no colo de um dos polos? Qual deles? Aqui não há culpados! Ninguém pode ser responsabilizado por dar causa ao caos.
É regra do ordenamento jurídico brasileiro que os pactos sejam cumpridos conforme estipulados, se esculpindo tal premissa nos dizeres em latim: “pacta sunt servanda”. Tal regra permite a segurança jurídica de que aquilo que foi acordado será cumprido.
Quando as condições, nas quais tais acordos foram criados, são modificadas sem participação das vontades das partes em algo imprevisível e que torne impossível para uma das partes cumpri-lo, o que fazer?
“Rebus sic stantibus” é outra máxima usada nas relações contratuais e significa que as condições pactuadas permanecerão válidas enquanto se mantiver a situação que lhe deu causa.
Ocorre que, ao longo da execução do contrato, algumas situações poderão surgir e trazer um desequilíbrio ao seu cumprimento.
A doutrina brasileira nomeou tal situação como “Teoria da Imprevisão” e seu objetivo é buscar o retorno do equilíbrio contratual, mitigando o engessamento das cláusulas originalmente pactuadas.
E assim preceitua o Código Civil Brasileiro:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade.
O excesso de onerosidade de uma das partes também é protegido no Código de Defesa do Consumidor, Lei nº. 8.078/1990, senão vejamos:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
§ 1ºPresume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
§ 2º A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração,decorrer ônus excessivo a qualquer das partes. (grifo nosso)
A Pandemia do Coronavírus (COVID-19) no mundo pode ser enquadrada no ordenamento jurídico brasileiro na definição de “força maior” e esse acontecimento já está previsto como desestabilizador de diversas obrigações pactuadas nas condições anteriores a esse evento externo.
A “força maior” incide quando há algo inevitável, imprevisível e involuntário em relação às partes, para o qual as mesmas não concorreram direta ou indiretamente, e que impeça o cumprimento das obrigações pactuadas no status normal. Esses fatos externos podem ser: ordem de autoridades (fato do príncipe), fenômenos naturais (raios, terremotos, inundações, e aqui se insere o COVID – 19, etc.) e ocorrências políticas (guerras, revoluções, etc.).
Assim, é natural o questionamento sobre a possibilidade de revisão das obrigações, pois a parte que pactuou determinado dever, assim o fez de acordo com as condições a ele apresentadas. Ocorre que se o cenário mudou por razões que o contratante ou o contratado não foi capaz de prever e, ainda, por algo que foi alheio à sua vontade, não é crível que este ou aquele assuma tal consequência e tenha que manter intactas as cláusulas contratuais.
E, ainda, no que tange ao caso fortuito, o Código Civil dispõe que:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Por isso nos contratos privados há a possibilidade de renegociação das cláusulas, e nesse momento é o que é aconselhável a todos os particulares.
A “força maior”, entretanto, jamais poderá ser usada com má-fé, pois ela em absolutamente nada legalizará o “calote” ou descumprimento das obrigações, e por isso a falta de condições do cumprimento das obrigações em razão do evento externo deverá ser demostrada e comprovada.
A relativização de algumas cláusulas contratuais também se aplicará ao contrato de trabalho? Ele também é pactuado em um panorama que de repente foi retirado de cena sem que o empregador pudesse questionar ou opinar a respeito, muito menos impedir sua ocorrência.
Será que não olharemos para o empregador utilizando as mesmas premissas dos contratantes cíveis, entendendo que ele também não contribuiu, não poderia prever e não poderá arcar sozinho com tamanho ônus excessivo? Como garantir as mesmas condições ao empregado se as mesmas condições não serão asseguradas para ao empregador? A força maior pode atingir as duas partes do contrato de maneira desconforme, não sendo possível, portanto, padronizar cada comportamento.
Certamente não estamos transferindo aqui o risco do negócio. Não se trata disso. Isso seria inaceitável. Também não seria razoável mexer em nenhuma garantia do trabalhador ou em direitos indisponíveis, os quais não se negocia em nenhuma situação, como os previstos no art. 611-B da CLT.
As regras trabalhistas foram criadas considerando situações normais de mercado e que agora foram alteradas sem que o empregador pudesse prever, se antecipar ou participar e que, por isso, necessitará de nova regulamentação para tornar viável o equilíbrio na relação de trabalho, permitindo a melhor resolução para ambas as partes.
Pensando exatamente nisso, no último domingo, dia 22 de março de 2020, foi publicada a Medida Provisória nº 927 que trouxe medidas viáveis para o enfrentamento dos efeitos econômicos para o atual cenário de calamidade pública frente o COVID-19.
A MP flexibiliza algumas normas trabalhistas apenas quanto à desburocratização de alguns entraves trabalhistas. Tirou, portanto, a necessidade de participação do sindicato em assuntos que dependiam destes, quando estabeleceu que os acordos individuais escritos terão preponderância aos demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites da Constituição Federal, no intuito de garantir a permanência do vínculo de emprego durante o estado de calamidade.
Nesse sentido, flexibilizou as seguintes medidas para enfrentamento dos efeitos econômicos do período:
I – TELETRABALHO (Artigos 4º e 5º da MP 927):
O empregador poderá, a seu critério, alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância e determinar o retorno ao regime de trabalho presencial, independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho, com o aviso ao empregado de 48 (quarenta e oito) da alteração do regime por escrito ou meio eletrônico.
II – DA ANTECIPAÇÃO DE FÉRIAS INDIVIDUAIS (Artigos 6º a 10º):
O empregador informará ao empregado sobre a antecipação de suas férias com antecedência de, no mínimo, quarenta e oito horas, por escrito ou por meio eletrônico, com a indicação do período a ser gozado pelo empregado, não podendo ser inferior a 5 (cinco) dias corridos.
A antecipação das férias individuais poderá ser concedida independentemente do transcurso do período aquisitivo, ou seja, o empregado não precisa ter 12 (doze) meses de trabalho ininterrupto para a antecipação.
Os trabalhadores que pertençam ao grupo de risco do coronavírus (covid-19) serão priorizados para o gozo de férias, individuais ou coletivas.
O pagamento da remuneração das férias antecipadas concedidas nesse período, poderá ser efetuado até o quinto dia útil do mês subsequente ao início do gozo das férias, e o pagamento do adicional de um terço de férias após sua concessão, até a data em que é devida a gratificação natalina.
Na hipótese de dispensa do empregado, o empregador pagará, juntamente com o pagamento dos haveres rescisórios, os valores ainda não adimplidos relativos às férias.
III – DA CONCESSÃO DE FÉRIAS COLETIVAS (artigos 11º e 12º):
O empregador poderá, a seu critério, conceder férias coletivas e deverá notificar o conjunto de empregados afetados com antecedência de, no mínimo, quarenta e oito horas, não aplicáveis o limite máximo de períodos anuais e o limite mínimo de dias corridos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, dispensando a formalidade de comunicação prévia ao órgão local do Ministério da Economia e a comunicação aos sindicatos representativos da categoria profissional
IV – DO APROVEITAMENTO E ANTECIPAÇÃO DE FERIADOS (artigo 13º):
Os empregadores poderão antecipar o gozo de feriados não religiosos federais, estaduais, distritais e municipais e deverão notificar, por escrito ou por meio eletrônico, o conjunto de empregados beneficiados com antecedência de, no mínimo, quarenta e oito horas, mediante indicação expressa dos feriados aproveitados, podendo ser utilizados para compensação do saldo em banco de horas.
O aproveitamento de feriados religiosos dependerá de concordância do empregado, mediante manifestação em acordo individual escrito.
V – DO BANCO DE HORAS (art. 14º):
Ficam autorizadas a interrupção das atividades pelo empregador e a constituição de regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas, em favor do empregador ou do empregado, estabelecido por meio de acordo coletivo ou individual formal, para a compensação no prazo de até dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública. Nessa hipótese não será interrompido o pagamento do salário.
A compensação de tempo para recuperação do período interrompido poderá ser feita mediante prorrogação de jornada em até duas horas, que não poderá exceder dez horas diárias.
VI – SUSPENSÃO DE EXIGÊNCIAS ADMINISTRATIVAS EM SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO (Artigos 15º a 17º):
Fica suspensa a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto dos exames demissionais, devendo ser realizado em até 60 (sessenta) dias após o encerramento do estado de calamidade.
O exame demissional poderá ser dispensado caso o exame médico ocupacional mais recente tenha sido realizado há menos de cento e oitenta dias.
VII – DIFERIMENTO DO RECOLHIMENTO DO FUNDO DE GARANTIA DO TEMPO DE SERVIÇO – FGTS. (Artigos 19 a 25):
Fica suspensa a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020, respectivamente.
O recolhimento das competências de março, abril e maio de 2020 poderá ser realizado de forma parcelada, sem a incidência da atualização, da multa e dos encargos, quitado em até seis parcelas mensais, com vencimento no sétimo dia de cada mês, a partir de julho de 2020.
Para usufruir da prerrogativa, o empregador fica obrigado a declarar as informações, até 20 de junho de 2020. Os parcelamentos de débito do FGTS em curso que tenham parcelas a vencer nos meses de março, abril e maio não impedirão a emissão de certificado de regularidade.
Versou, ainda, que os casos de contaminação pelo COVID-19 não são considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
VIII – DOS ESTABELECIMENTOS DE SAÚDE (Artigos 26 a 33):
Fica permitido aos estabelecimentos de saúde, mediante acordo individual escrito, mesmo para atividades insalubres e com jornada de 12×36, prorrogar a jornada de trabalho, seguindo o artigo 61[1] da CLT, e adotar escalas de horas suplementares entre a décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada, sem que haja penalidade administrativa, garantido o repouso semanal remunerado (art. 67, CLT).
As horas suplementares computadas em decorrência desta prorrogação de jornada poderão ser compensadas, no prazo de dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, por meio de banco de horas ou remuneradas como hora extra.
As medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariarem o disposto na citada Medida Provisória, tomadas no período dos trinta dias anteriores à data de entrada em vigor desta Medida Provisória, serão consideradas válidas.
Desta forma, a Medida Provisória 927 veio no intuito de flexibilizar as normas trabalhistas para que os empregados e empregadores possam sobreviver a este período de calamidade.
E esse momento não é propício a críticas ou apoio de crenças que dificultem a adaptação de todos os setores. Toda a sociedade deve se unir e ceder naquilo que lhe caiba e não se apoiar em legislações-escudos que engessem a flexibilização e uma maior solução para todas as questões.
Enquanto não há o desafogamento de nenhuma obrigação empresarial como a isenção de impostos ligados a folha de pagamento, por exemplo, o empresariado brasileiro vai driblando talvez o que poderá entrar para história como maior crise no setor de todos os tempos.
Quando pensamos na atividade empresarial, pensamos no crescimento de nossa sociedade, na manutenção dos empregos, e consequentemente, na manutenção da dignidade da pessoa humana para todos os brasileiros.
Esse olhar é uma via de mão dupla e qualquer pensamento contrário é ilusão, não se sustenta no mundo real, porque para assegurar a saúde de cada cidadão (principalmente os mais vulneráveis e desassistidos) o governo precisa ter meios para garantir a saúde do sistema, que por sua vez depende da saúde financeira dos contribuintes, que por sua vez sustentam a saúde social. Essa inter-relação e a interdependência Estado-Empresa-Cidadão deixa claro que a saúde de um afeta a saúde do outro! Não se pode tratar o problema cuidando de apenas uma das partes.
ANDREA CAMARGO, sócia fundadora da Camargo & Camargo Advogados Associados; Real Prática e Iblawa- International Business Law Association;
Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV; Especialista em Direito Processual Civil pela FDV, Especialista em Direito Empresarial pela FGV; Pós-Graduada em Ciências Jurídicas pelo DIex/Ielf;
Dúvidas ou outras perguntas acesse o site: www.camargoecamargoadvogados.com.br/ ou diretamente no email: contato@camargoecamargoadvogados.com.br
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
CÓDIGO Civil: Lei nº 10.406/2002. Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm
CÓDIGO de Defesa do Consumidor: Lei nº 8.078/1990. Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm.
CLT. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm
[1] Art. 61 – Ocorrendo necessidade imperiosa, poderá a duração do trabalho exceder do limite legal ou convencionado, seja para fazer face a motivo de força maior, seja para atender à realização ou conclusão de serviços inadiáveis ou cuja inexecução possa acarretar prejuízo manifesto.
- 1º O excesso, nos casos deste artigo, pode ser exigido independentemente de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.
- 2º – Nos casos de excesso de horário por motivo de força maior, a remuneração da hora excedente não será inferior à da hora normal. Nos demais casos de excesso previstos neste artigo, a remuneração será, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) superior à da hora normal, e o trabalho não poderá exceder de 12 (doze) horas, desde que a lei não fixe expressamente outro limite.
- 3º – Sempre que ocorrer interrupção do trabalho, resultante de causas acidentais, ou de força maior, que determinem a impossibilidade de sua realização, a duração do trabalho poderá ser prorrogada pelo tempo necessário até o máximo de 2 (duas) horas, durante o número de dias indispensáveis à recuperação do tempo perdido, desde que não exceda de 10 (dez) horas diárias, em período não superior a 45 (quarenta e cinco) dias por ano, sujeita essa recuperação à prévia autorização da autoridade competente